Wednesday, December 14, 2005

O amor das Flores

O ônibus seguia seu rumo pela poluída cidade, cortando caminho em meio a moléculas de gás carbônico, levando o gado novo aos seus pastos sociais.

Dentro dele, dois belos exemplares da raça Ex-cravos conversavam distraidamente. Em seus colos gordurosos, um levava um botão de rosa no auge de sua beleza e o outro, um vasinho singelo, com perfumado e desconhecido tipo de flor silvestre.

O florzinho silvestre, muito simpático, começou a puxar assunto com a delicada rosa:
- Eaê, tudo belê?

E a delicada rosa, ouvindo linguagem tão rudimentar, respondeu-lhe com visível desdém:

- Estava, até você me incomodar.

O flor silvestre, sentindo o desgosto da rosa em se comunicar com ele, insistiu, gracejando bem-humorado:

- Você tem essa belezura toda e só dá espinhos, broto?

- Eu não sou broto! - revidou a rosa, que começava a esquentar sua sépala com "aquele selvagem".

Porém, o flor era perseverante, nascera em meio à terra desvitalizada, queimada e infestada de agrotóxicos em época de seca, cresceu e se tornou um flor admirável. Assim, complementou, em tom reflexivo:

- Se te colocarem no líquido sagrado você será um...

A rosa olhou-o com estranheza. "Líquido sagrado?". Diante de tal termo, respondeu-lhe:
- Não conheço líquido sagrado...

Vendo a estranheza com a qual ela lhe respondera, o flor olhou-a nas pétalas dos olhos e falou amigavelmente:

- Fofa, líquido sagrado é aquele que cai do céu...

- Água? - perguntou ela, entre surpresa e espantada - Mas eu não gosto, tem gosto amargo... - afirmou, virando a sépala rosada, tristemente.

- Qual é, florzinha! Água não tem gosto, não tem cor e não tem cheiro... Ela fala com suas raízes em melodia... - disse ele, inspiradíssimo.

A rosa olhou na sépala novamente. "Sujeitinho estranho", pensou. E, ainda mantida na cristaleira da amargura, destilou róseo veneno, num tom de quase desespero:

- A água que eu conheço também não tem cor nem cheiro, mas tem gosto e não fala em melodia!

O flor não se ressentiu com a altura da voz dela. O campo onde nascera dera-lhe muitas lições. Os anos de contemplação de colinas e gado pastando tornaram-no profundo, paciente e compreensivo. Por vezes, pensava que deveria ter nascido semente de copo-de-leite, e não de um flor, silvestre e desconhecido, afinal, se fosse copo, teria muito mais utilidade. Isso não chegava perto de vaidade, ao contrário, era a humildade natural que se expressava em seu perfume. Em vez de ressentido, estava indignado com a vida que aquela linda rosinha vinha levando. "Com o que, então, ela não gosta de água? Mas todas as flores devem gostar de água!" - pensava. O flor já ouvira falar, por meio dos passarinhos que visitavam a cidade, dos absurdos que a civilização bovina fazia, mas nunca esperou encontrar isso frente a frente, e este fato mudava sua percepção da realidade. Indignado, exclamou:

- Caracas! A água que te dão é água morta, é água pra boi beber! Uma vez, um cravo-de-defunto me falou que davam essa "água" para ele, não é à toa que ele era chamado de cravo-de-defunto!

A rosa, que, apesar de amarga, era muito sensível - pois as rosas são as rainhas da sensibilidade, aliás, para ser rosa, só uma característica é preciso, a sensibilidade - ergueu sua sépala. Retirou uma pétala de sobre os olhos e, pensativamente, sorriu-lhe. Percebia que aquele "flor selvagem" conhecia terras a mais do que ela, literalmente. "Líquido Sagrado - pensava, delicadamente - veja só. Isso é jeito de chamar ”água"? Sim, era um nome novo para ela, derivado, fabricado, carimbado e embalado direto nas fábricas da liberdade, a qual a rosa sonhava tanto em conhecer.
Ela era uma rosa de floricultura, ele, um flor silvestre de nome desconhecido, contudo, com um perfume tão adocicado que era de deixar "na poeira" até os perfumes das gardênias e dos jasmins-de-poeta. Percebeu que aquele flor era uma legítima flor, pois cumpria sua função, coisa que a amarga e triste flor de vitrine não conseguia: a missão de inspirar. "Como alguém pode inspirar se está travado em sua liberdade, podado segundo os interesses alheios, em vez de crescer com o ritmo de suas próprias raízes, de seu próprio coração?" - era o que ela se perguntava, olhando pela janela a selva de pedra tão conhecida. "Os campos, ah...” - balbuciou, como num resto de inspiração, talvez proporcionada pela presença daquele ("simpático"?) flor silvestre... Nessa altura, o desdém e a altivez haviam se transformado em doçura, a rosa abaixara a guarda de seus espinhos e reconhecera a verdade: ela era a selvagem, pois vivia fora do ritmo natural e era podada semanalmente, segundo os conceitos estéticos dos bovinofloricultores. Ela, a bela flor, a bela rosa, a triste rosa, a amarga rosa...
Respirou fundo...algo queria escapar de seu caule que parecia pulsar com a seiva...

_ Flor... - disse em tom reflexivo e pausado - desculpe por ter sido grossa com você!

E o flor, que já parecia esperar tal resposta, sorriu ao responder:

_ Não grila, rosinha, você tem espinhos para isso, para que não se aproveitem da sua beleza.

Vendo mais uma vez como ele era compreensivo, a rosa sorriu. Agora, suas pétalas, avermelhando-se, deixaram transparecer algum secreto movimento, oculto no verde caule e nas róseas pétalas. Olhou nos olhos dele, enquanto ele ajeitava de leve sua pétala laranja-perolada, floreando:

E flor - acrescentou ela em tom de tímida súplica apaixonada... -Nesse momento, tudo tremeu... Um dos gados Ex-cravos levantou-se, interrompendo a florida conversa. Ia ele para o seu ganha-pasto, o seu matadouro social, onde todos dão sua existência em troca de um "vale-pasto", mesmo havendo tanto pasto por aí.

Da janela do ônibus, o flor silvestre emanava seu perfume para a rosa pela última vez, perfume que ela nunca esqueceria, pois seria a doce lembrança da liberdade...

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